segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Esclarecendo as coisas



Na atual corrente pragmática, ou quinta-colunismo, que inunda o movimento vegano abolicionista com a intenção oculta (e não tão oculta assim) de sabotá-lo de dentro, estão surgindo uma série de atitudes um tanto extravagantes sobre as quais gostaria de comentar. Um dos vários absurdos com que nos deparamos refere-se ao consumo, por um suposto vegano, de produtos de origem animal que não tenham sido diretamente financiados por ele. Isso significa que poderia ir a um restaurante qualquer e comer as sobras de carne, por exemplo, desde que não houvesse uma troca econômica envolvida. Supostamente, assim não se colabora com a exploração animal de forma alguma. Creio que se chame “freeganism” ou algo do gênero, ou seja, veganismo grátis. Sei que alguns autoproclamados veganos também aderem à essa prática sem motivo aparente, ainda que de forma ocasional.

Não se trata apenas de uma simples anedota, mas sim de um erro básico acerca do que se entende realmente por veganismo. Veganismo não é comer os restos de comida deixados em qualquer lugar como um mendigo ou um carniceiro, com todo o respeito a ambos, mas sim um estilo de vida ético baseado no consumo de produtos vegetais para a manutenção da vida individual e da social, que rejeita o uso de qualquer produto de origem animal e a utilização ou sujeição de animais para deles obter qualquer benefício.

Mesmo que não haja colaboração econômica, cometemos um grave erro moral quando nos alimentamos do produto de uma exploração criminosa que implica a escravidão, o maltrato, a tortura e o assassinato cruel de bilhões de inocentes por ano. Não podemos basear nossa vida nem participar em algo tão errôneo. Uma vida vegana caracteriza-se por buscar, praticar e colaborar com uma forma de existência cujo sustento seja obtido de vegetais, na qual tanto os animais humanos quanto os não humanos sejam totalmente respeitados. Claro que os vegetais devem ser respeitados na medida do possível, mas ao passo que os animais são seres inquestionavelmente capazes de sentir, não devendo portanto serem utilizados como coisas, os vegetais não possuem nenhuma capacidade comprovada de sentir; logo, não é moralmente incorreto usá-los como objetos, visto que não destruímos os interesses que supostamente teriam se não carecessem em absoluto dos atributos essenciais para isso, como a consciência ou a senciência.

Qual é o problema em consumir produtos de origem animal que, ainda que fizessem parte do mercado, tenham sido descartados? Há muitas objeções a isso, mas me concentrarei nas éticas:

- O dano está ali. O fato de não estarmos demandando que esse dano continue não é uma desculpa para manter nossa vida com o resultado de um crime. Porque isso significa que estamos aceitando um ato consumado, o assassinato de um animal não humano, em lugar de rejeitá-lo completamente, que é o que se espera de um veganismo coerente e fundamentado. Um vegano não mantém sua vida com produtos de origem animal, sempre que tiver escolha.

- Nossos atos detêm sempre um caráter social. Não podemos ter a intenção de denunciar um abuso tão terrível como a exploração dos animais e, ao mesmo tempo, usar seus produtos. Precisamos buscar, potencializar e empregar alternativas veganas, e não depender do que nos oferece a indústria que baseia seus produtos no sofrimento inimaginável de milhões de animais inocentes. Veganismo é criar uma cultura vegana, não aproveitar nem coletar restos dos mortos.

- O veganismo é um modelo de vida. Devemos passar a imagem de que um estilo de vida completamente vegano é perfeitamente possível e viável, e por isso temos que nos fazer visíveis e reivindicativos tanto quanto possível em nossa vida diária. E isso se faz consumindo produtos de origem vegetal, livres de crueldade com os animais não humanos, e com os humanos também.

Há algum tempo, Matt Ball publicou um manifesto vegano que reconsidera alguns pontos acerca da prática do veganismo. Levando em conta que os veganos vivem em uma sociedade que foi baseada e que ainda se baseia justamente naquilo que rejeitamos, viver uma vida puramente vegana é praticamente impossível para muitos, caso sejam aplicados critérios muito rigorosos (há inúmeros produtos cotidianos ao nosso redor que utilizam ingredientes de origem animal, como o óleo das escadas rolantes e dos elevadores, por exemplo). Então, segundo o sr. Ball, a questão central seria separar os produtos dos subprodutos, afirmando que o veganismo deveria focar-se nos produtos, porque abster-se completamente dos subprodutos seria quase impossível; além disso, esses são derivados dos primeiros, e se os produtos são extintos, também são os subprodutos.

Não vou criticar aqui a atitude prática defendida por Matt Ball, mas apontar que, se mal interpretada, leva a uma total confusão sobre o que entendemos por produto e subproduto. Isso porque pelo ponto de vista econômico, ao comer um pedaço de bife que tenha sido adquirido e descartado por um terceiro, não estaríamos consumindo nem um produto nem um subproduto, já que não pagamos por ele; o bife em questão estaria de fato fora de ambas as categorias. Então por que se preocupar?

Creio que essa ideia é preocupante porque contribui para perpetuar a gravíssima crença errônea de que alguém pode defender os animais ao mesmo tempo que os come, quando temos alternativa. É o erro de acreditar que alguém pode eliminar ou melhorar algo que é intrinsecamente mau, mantendo os hábitos tradicionais que provocam o horror contra o qual os veganos abolicionistas lutam: o uso dos outros animais como recursos econômicos, como escravos. Tem sido justamente o capricho de comer animais, os deixando totalmente fora do nosso âmbito moral, que causou o estabelecimento de uma indústria de exploração animal tão massiva e poderosa como a que existe atualmente. Ser vegano significa criar novos hábitos de alimentação que valem para qualquer momento. Os animais não são alimento, seus restos tampouco. O conceito vegano de comida elimina qualquer coisa que tenha relação com o abuso e o assassinato de animais. E isso vale para sempre. Se alguém não entende assim, não tem as ideias claras. E, pelo bem dos animais e por um mundo vegano, é melhor que as esclareça.

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