segunda-feira, 12 de abril de 2021

Uma crítica à "interseccionalidade"


      Abordagem abolicionista dos Direitos dos Animais



Neste ensaio, gostaria de explicar por que alguns ativistas veganos são contra uma abordagem conhecida como "interseccionalidade". Objeção essa que certamente não está relacionada com os supostos motivos que alguns defensores da "interseccionalidade" parecem estar propagando.

Ao falarmos de "interseccionalidade" aqui, o faremos dentro do contexto animalista e vegano em particular, e estaremos nos referindo à ideia de que o veganismo deve se ocupar de outras injustiças além da exploração animal. Resumo os dois pontos fundamentais que sustentam o posicionamento "interseccional" assim:

* O movimento vegano deve compreender outras injustiças e opressões além do especismo e da exploração animal, porque todas as opressões estão intimamente inter-relacionadas e não podem ser combatidas nem erradicadas de forma específica.

* O movimento vegano não deve exigir que todos os humanos tenham a obrigação
moral de serem veganos, visto que alguns humanos fazem parte de grupos oprimidos ou desfavorecidos que têm sérias dificuldades para compreender ou colocar o veganismo em prática devido à sua situação econômica e cultural.

Tentarei explicar por que considero erradas as suposições da abordagem chamada "interseccionalidade".

Ser contra a "interseccionalidade" não significa ser a favor da injustiça

Ser contra a "interseccionalidade" não é ser contrário ao reconhecimento da existência de outras injustiças no mundo além do especismo e da exploração animal, às quais também devemos nos opor. Não é nada nem remotamente
parecido.

Ser contra a "interseccionalidade" só significa ser contra a deturpação do sentido do veganismo, que se refere a uma injustiça concreta. Ao falarmos de veganismo, falamos contra a exploração animal; falamos contra a crença de que os animais existem no mundo para satisfazer as necessidades humanas. Essa discriminação especista existe de forma específica e precisa de uma resposta específica que permita identificá-la e corrigi-la eticamente. Da mesma forma que o machismo precisa de uma resposta própria, à qual denominamos feminismo.

Quando falamos de veganismo, estamos nos referindo, portanto, a uma questão bem delimitada e apenas à essa questão em particular. Se assim o fazemos, é porque estamos convencidos de que esse problema merece uma atenção especial que o diferencie das demais injustiças, porque a maioria das pessoas nem sequer tem noção da existência de tal injustiça. Para a maioria delas, o especismo e a exploração animal são simplesmente algo normal e natural, e nem ao menos suspeitam de que se trata de um ato moralmente condenável.

No entanto, quando explicamos o veganismo à sociedade, explicamos que o especismo é tão injusto quanto o racismo ou o sexismo, e, claro, que a exploração de animais também é tão injusta quanto a exploração de seres humanos. O fundamento ético que sustenta o veganismo é universalista. O veganismo não surgiu do nada, foi fundado dentro de um contexto moral já contrário à exploração humana e considerava que deveríamos estender a abolição da escravidão até a abolição da exploração animal.

De acordo com seu sentido original, uma abordagem vegana deve se ocupar da injustiça concreta que é a exploração dos animais, não de qualquer outra questão moral diferente. O veganismo surgiu para que as pessoas se conscientizassem de que a exploração dos animais é uma injustiça — uma injustiça que a grande maioria das pessoas nem entende nem reconhece como tal até hoje. Desviar nosso foco para outras questões seria ir contra o próprio objetivo do veganismo.

Portanto, se quando falam de "interseccionalidade" quisessem dizer que devemos nos opor a outras discriminações assim como nos opomos ao especismo e que devemos combater qualquer opressão de seres conscientes, então estaríamos de acordo. Mas para assumir essa perspectiva não considero necessária nenhuma "interseccionalidade", o correto seria adotar a doutrina dos Direitos dos Animais — da qual o veganismo faz parte — que está intimamente relacionada à doutrina dos Direitos Humanos.

Mas se por "interseccionalidade" querem dizer que, de alguma maneira, devemos privilegiar os humanos em detrimento dos animais e que todos os humanos que são agentes morais não possuem igualmente uma obrigação moral de serem veganos, temo que devemos discordar.

Se concordam ou não com as razões que trago aqui, agradeceria que os defensores da "interseccionalidade" não acusem quem não concorda com sua abordagem de que aprovamos ou apoiamos, de alguma forma, o racismo, o sexismo ou qualquer outra injustiça com os seres humanos. É uma acusação totalmente errônea, e acredito que talvez um pouco mal-intencionada ou, no mínimo, bastante desinformada.

Ser contra a "interseccionalidade" significa ser contra adistorção do veganismo.

Creio que todos concordam que o feminismo se refere a uma injustiça concreta, o machismo, que afeta especialmente as mulheres. Falar de "interseccionalidade" aqui para introduzir temas alheios ao machismo seria uma tentativa de tangenciar o objetivo específico do feminismo. O mesmo acontece com o veganismo. Se desejamos adotar uma abordagem universal sobre todas as várias injustiças que prejudicam os humanos no mundo, a doutrina dos Direitos Humanos existe para tal. Mas se falamos de feminismo, falamos então de um problema específico, não de outros. Da mesma forma, quando falamos de veganismo, falamos apenas de um tema concreto, não de outros.

Se alguém não concorda com a abordagem vegana, é livre para adotar uma diferente. O que não me parece correto de modo algum é que alguém tenha a intenção de tangenciar, distorcer ou modificar a definição original do veganismo e o propósito de sua criação. Os fundadores do veganismo consideraram que o vegetarianismo era extremamente limitado para combater o problema moral da nossa relação com os animais e por essa razão decidiram criar um novo movimento, que acabou culminando no veganismo. Não se dedicaram a tentar forçar ou tangenciar o vegetarianismo para que se encaixasse com a nova abordagem que haviam desenvolvido, compreenderam que o adequado seria fundar outro movimento muito diferente.

Do mesmo modo, se alguém está realmente convencido de que o veganismo não serve como base para mudar nossa relação com os animais, o convido a fundar uma nova abordagem para que possamos conhecê-la e discuti-la. Mas também pediria encarecidamente para, por favor, não tentar distorcer o veganismo para sujeitá-lo a outras ideias. Se julgarem necessário, podem fundar outro movimento distinto e chamá-lo de "interseccionalismo" ou de outra coisa, e depois poderemos analisá-lo e julgar sua legitimidade; mas o que seria completamente inaceitável é
que chamem isso de veganismo.

Em alguns casos, notei que existem ativistas que, após abandonarem o consumo de produtos de origem animal, decidiram se intitular "veganos", mas com o tempo preferiram adotar outra perspectiva ideológica que não se encaixa com a filosofia do veganismo. Entretanto, já haviam se autodeclarado publicamente como "veganos" e não queriam abandonar o termo ou trocá-lo por outro diferente. Seguem se intitulando "veganos", embora a ideia que promovam não seja veganismo e, em alguns casos, nem sequer se trata de uma ideologia compatível com o veganismo como princípio ético.

Imaginemos por um momento que eu decidisse que o veganismo já não faz sentido, mas, ainda assim, continuasse publicando neste blog sob uma abordagem muito diferente, mantendo o nome Filosofia Vegana simplesmente porque é o título inicial da criação do blog e não desejo mudá-lo — todo mundo já o conhece por esse nome e demandaria um certo esforço criar novamente outro blog e contas diferentes nas redes sociais. Creio que esse comportamento seria muito desonesto de minha parte. Penso o mesmo em relação a quem se comporta assim hoje em dia.

"Interseccionalidade" ou antropocentrismo?

A "interseccionalidade" implica tangenciar o sentido do veganismo sob a desculpa de que o movimento vegano deve incluir também os problemas morais internos entre humanos. Isso parece mais um sintoma do antropocentrismo, o qual não permite, nem por um momento, que nós humanos deixemos de pensar em nós mesmos e em nossos problemas; que não tolera, nem por um momento, que nos foquemos apenas nos animais e nas discriminações e violências que afetam particularmente a eles.

Não é suficiente que quase todo ativismo esteja exclusivamente centrado nos nteresses da humanidade, e ainda exigem que retiremos ainda mais atenção dos interesses dos animais para direcioná-la aos humanos. Cerca de 99% do ativismo em todo o mundo está dedicado exclusivamente aos interesses humanos. "Interseccionalidade" significa propor que essa porcentagem aumente para 99,99%, reduzindo ainda mais a pouca atenção específica da qual os interesses dos animais já dispõem.

Um típico exemplo de "interseccionalidade" é a inclusão do repúdio ao capitalismo dentro da abordagem vegana. Esse é um clássico exemplo de como os problemas especificamente humanos procuram se introduzir no âmbito do veganismo. O anticapitalismo, nesse caso, não só se origina de uma inclinação antropocêntrica, como se equivoca ao atribuir ao capitalismo um papel de causalidade na exploração dos animais. A exploração animal existia muito an do capitalismo aparecer e permaneceu intacta em sociedades não capitalistas.

Por sua vez, os defensores da 'interseccionalidade' alegam que sua abordagem serve para atrair as pessoas para o veganismo. No entanto, não vejo nenhuma prova que corrobore essa afirmação. A meu ver, a "interseccionalidade" não está ajudando as pessoas a se aproximarem do veganismo, mas sim fazendo com que todos os não-veganos continuem acreditando que os problemas humanos são mais importantes pelo simples fato de afetarem os humanos, e que podemos ignorar os interesses dos animais em favor dos interesses humanos pelo simples fato de serem humanos.

Não parece ser por acaso que os ativistas que difundem a "interseccionalidade" também defendam que o veganismo não deve ser uma obrigação moral para todos os humanos, alegando que existem humanos que se encontram em alguma situação de desfavorecimento ou pertencem a um grupo tradicionalmente oprimido, e isso já dá a eles uma desculpa para continuarem discriminando e explorando os animais, como denunciou o professor Gary Francione nos Estados Unidos. Assim, a "interseccionalidade" é contra falar de escravidão quando nos referimos à sujeição dos animais ao status de propriedade, alegando que isso ofende os grupos humanos que sofreram com a prática.

Desconfio que os incentivadores da "interseccionalidade" rejeitam a teoria dos direitos morais para defender posicionamentos não apenas antropocêntricos, mas também contrários ao veganismo; como costuma acontecer, por exemplo, com quem diz defender o antiespecismo, um rótulo que, muitas vezes, nada mais é do que uma máscara do bem-estarismo.


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Reflexões minimalistas



Filosoficamente, o minimalismo pode ser entendido como uma extensão do princípio de Occam, que recomenda que não devemos multiplicar as entidades sem necessidade. Se não podemos justificar a necessidade de algo, para quê produzi-lo ou comprá-lo? O princípio de Occam é, sem dúvidas, um apelo à humildade e à simplicidade. Esse princípio não afirma que tudo deve ser reduzido a sua forma mais simples, mas sim que não devemos aumentar a quantidade ou a complexidade das coisas sem uma boa justificativa para isso. Dessa forma, o minimalismo incentiva que priorizemos o essencial ao supérfluo, o simples ao complicado, o importante ao desnecessário.

Há muitos sites em português dedicados ao minimalismo como filosofia e estilo de vida, então quem se interessar pode dar uma olhada. Gostaria de aproveitar para contar uma história pessoal em que coloquei em prática essa filosofia.

Uma das formas em que usei o minimalismo está relacionada com meu gosto pela leitura. Depois de anos comprando em livrarias, cheguei a ter uma coleção de mais de quatrocentos livros, o que acabou se tornando um grande problema de espaço em casa. Até que me dei conta de que não tinha sentido acumular tantos exemplares, comprados de forma um pouco compulsiva, alguns dos quais eu nem sequer tinha a intenção de ler novamente. Então comecei a presentear, doar ou vender todos os livros que não eram especialmente relevantes para mim ou os que já tinha uma cópia de boa qualidade em formato digital, chegando a reduzir o número pela metade. Neste ano, limitarei minha coleção física a cem exemplares. A maioria dos livros que mantive são no formato reduzido ou edição de bolso, o que resolveu satisfatoriamente o problema de espaço, ainda que não se trate apenas de uma questão de espaço. Sou muito apaixonado pela leitura, mas a energia e o tempo são limitados e deve-se focar no que importa. Aliás, falando em leitura, se alguém procura livros em espanhol/português sobre veganismo e filosofia animalista em geral, pode encontrar uma lista clicando aqui.

Talvez alguns leitores estejam pensando "por que está nos contando sobre sua vida pessoal se viemos aqui ler sobre veganismo?" — e com razão. Há alguma relação entre veganismo e minimalismo? Acredito que possamos encontrar alguma. Ser praticante do minimalismo não obriga nem leva ao veganismo, apesar desse ser uma postura muito compatível e convergente àquele.

Algumas pessoas argumentam que a ótica minimalista leva ao veganismo visto que os dados indicam que praticar o veganismo significa consumir menos recursos naturais em comparação à exploração animal, e também implica em menos animais sofrendo e morrendo em razão de nosso consumo. Esse raciocínio faz sentido desde um ponto de vista puramente empírico, mas nem tanto a partir de um ponto de vista moral, porque, como já argumentado em ensaios anteriores, o veganismo é um princípio ético, não um determinado comportamento. Claro que adotar o veganismo obriga, logicamente, a não consumir produtos de origem animal e a não utilizar os animais, mas ainda que a consequência da prática do veganismo fosse o contrário do que é em realidade — ou seja, que sua execução supostamente implicasse em maiores gastos de recursos naturais, ou na morte de mais animais por causa da agricultura — o veganismo continuaria sendo nossa obrigação moral de qualquer maneira.

Nossa primeira obrigação moral é não tratar os seres conscientes como simples meios para nossos fins. Depois disso, também deveríamos nos preocupar em reduzir e evitar os danos que lhes causamos ao viver, que incluem danos acidentais ou indiretos, como a poluição. O princípio de evitar o dano está subordinado ao princípio de respeitar os seres dotados de sensibilidade como pessoas, e não ao contrário. Se não reconhecemos os seres conscientes previamente como pessoas, então nem sequer teríamos racionalmente uma obrigação moral de tentar evitar causar-lhes sofrimento.

Em diversas ocasiões, deixou-se claro que o veganismo é o mínimo — e não o máximo — que podemos fazer pelos animais, no sentido de que o veganismo se trata de uma questão de ética básica. Poderíamos dizer que se trata de um minimalismo moral. Por outro lado, se levarmos em consideração que, no geral, não precisamos usar os animais para viver e desfrutar de saúde e de uma boa qualidade de vida, significa que estamos condicionando os interesses básicos e vitais dos animais para satisfazer nossos caprichos e frivolidades. Isso é claramente contrário ao minimalismo, se de fato entendermos minimalismo como a priorização do essencial frente ao trivial. Entretanto, esse enfoque é, em realidade, mais relacionado com o humanitarismo do que com o veganismo.

Há outra perspectiva minimalista mais compatível com o veganismo baseada na ideia de que se a violência é algo moralmente mau, então devemos evitá-la, e parece claro que, ao incorporar o veganismo, vivemos uma vida menos violenta no que diz respeito aos animais, dado que nos recusamos a tratá-los como objetos e recursos. Há uma relação entre veganismo e não-violência. O veganismo não implica nada além disso, mas se renunciarmos a crença de que os animais são objetos para nosso benefício e reconhecermos que eles são sujeitos de direitos, tal base moral é o fundamento e a motivação para expandir nossa consideração moral a outros âmbitos e comportamentos que também impactam os animais, mesmo que não impliquem em sua utilização.

Com relação ao minimalismo, finalizo a publicação aqui. Desejo a todos um ano feliz e vegano.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Um bebê, um coelho, uma maçã e uma falácia

«Sua falacia logica é»


O autor Harvey Diamond publicou um livro sobre nutrição que fez bastante sucesso nos Estados Unidos e no qual afirma que a dieta natural para o ser humano é constituída por vegetais. Para defender essa ideia, Harvey alegou, entre outros argumentos, que uma criança pequena jamais comeria um coelho por instinto, ao passo que comeria uma maçã. Essa alegoria foi apresentada por alguns ativistas em prol do vegetarianismo e do veganismo. 

Gostaria de fazer três observações sobre esse argumento.

Em primeiro lugar, se colocarmos um filhote de leão na mesma situação, tampouco é provável que ele coma o coelho, dado que seu instinto predatório ainda não está desenvolvido e que se alimenta do leite materno, assim como os demais mamíferos. Certamente, essa situação não prova que o ser humano não seja carnívoro. Sem contar que se no lugar de um coelho colocassem um animal muito menor, como um inseto, não seria de estranhar que a criança o levasse à boca. Além do mais, desde quando o comportamento das crianças representa um critério moral? Propor essa situação hipotética é um desperdício de tempo, que poderia ter sido melhor empregado explicando que podemos viver de maneira saudável com uma dieta vegana bem planejada.

Em segundo lugar, ainda que os seres humanos fossem carnívoros, isso não justificaria moralmente que comêssemos animais. Suponhamos que em lugar de sermos uma espécie de primatas fôssemos uma espécie de felinos - continuaríamos obrigados a não explorar os animais, visto que somos agentes morais. Mesmo sendo carnívoros, poderíamos elaborar uma dieta saudável sem produtos de origem animal, do mesmo modo que milhões de gatos - que são fisiologicamente carnívoros - vivem de forma saudável com uma alimentação vegana.

Em terceiro lugar, devemos evitar os argumentos falaciosos ao defender uma ideia. Um ativista pode argumentar que não se importa que os argumentos sejam corretos, apenas que funcionem para motivar as pessoas a deixarem de explorar os animais. Mas funcionam de fato? Duvido que um argumento que é facilmente refutável funcione em absoluto. Se usamos argumentosfraudulentos, o que estamos mostrando é que não nos importamos com a verdade, somente em convencer os demais, mesmo que seja com artimanhas.

Isso não é honesto. Envenenar fatalmente alguém funciona para conseguir que esse indivíduo deixe de explorar animais? Sem dúvidas, mas esse não parece ser um ato moralmente aceitável. Argumentar é uma maneira de agir, e agir de forma imoral não se justifica com a desculpa de ter a intenção de alcançar um suposto bem.

Antes de utilizar um argumento, deve-se avaliar:

1. Se o argumento se baseia em fatos empiricamente comprovados.

2. Se o argumento é formalmente coerente.

3. Se o argumento que usamos é deontologicamente aceitável.

Mais além, o que argumentamos não deve ser verdadeiro apenas a partir de uma perspectiva empírica, formal e normativa, mas deve ser também eticamente correto. Um exemplo:

[1] X é, com efeito, mais poderoso que Y

[2] Portanto, X pode efetivamente oprimir Y

[3] Logo, é moralmente correto que X oprima Y.

Esse argumento pode ser correto a nível empírico e formal, mas é logicamente errôneo porque um juízo moral não pode ser inferido a partir de uma situação factual. Ter a intenção de inferir um juízo moral a partir de uma situação natural é como tentar justificar o estrangulamento alegando que nossas mãos são naturalmente concebidas para estrangular os outros.

O fato de defender uma causa justa não converte automaticamente em justos os argumentos utilizados para defendê-la. A veracidade de um argumento depende se ele se ajusta à lógica em todos os aspectos [formal, material, normativo], e não se é usado para defender uma boa causa.

Traduzido por Júlia Portela

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A racionalização e o uso de animais


No geral, os seres humanos precisam ter um motivo que justifique o que fazem. Nossa própria natureza racional exige que tenhamos conhecimento dos motivos e objetivos de nossas ações. Embora a ideia de que os animais são seres inferiores seja incutida em nós desde a infância —da mesma forma como somos acostumados a usá-los— mesmo depois de termos incorporado essa mentalidade, buscamos as razões que supostamente justificam o que fazemos. É aqui que entra a racionalização. Nossa consciência moral em particular necessita que haja uma razão que justifique o sofrimento que infligimos a outros. Causar sofrimento gratuito a outrem enoja nosso sentido moral.

Uma pesquisa liderada pelo Dr. Jared Piazza, do departamento de psicologia da Universidade de Lancaster, aponta que os consumidores de carne que adotam racionalizações para a própria conduta sentem-se menos culpados pelo sofrimento que causam aos animais. A pesquisa descobriu que a racionalização de seus hábitos baseia-se principalmente em quatro argumentos que, na língua inglesa, começam com ‘n’: "natural, normal, necessary and nice" [natural, normal, necessário e agradável], abreviados como 4N.

Esses argumentos são bem conhecidos neste blog e assim se resumem:

*Natural: os humanos são onívoros.

*Necessário: comer carne é necessário para obter nutrientes.

*Normal: crescemos comendo animais e a maioria faz o mesmo.

*Agradável: comer carne é delicioso.

O Dr. Piazza explica que a aparição dessas justificativas foi motivada pelas objeções éticas contra o consumo de carne, como uma tentativa de deter o sentimento de culpa e a inevitável reprovação moral por causar sofrimento aos animais sem uma razão que o justifique. Ele também aponta que a adesão às 4N está associada ao desprezo da capacidade mental dos animais e à maior tolerância à desigualdade social na própria sociedade humana.

Esses resultados coincidem com os de outros estudos sobre psicologia socialque revelaram que as pessoas que consomem carne tendem a menosprezar a senciência especificamente dos animais que utilizam como comida, chegando inclusive a negar que sofrem. A mente usa mecanismos para evitar o conflito moral com nossos hábitos. Preferimos pensar que os animais não sentem ou não sofrem porque assim ficamos mais tranquilos e não desafiamos a moralidade de nossa própria conduta.

A pesquisa liderada por Piazza, focada na psicologia moral, foi além do consumo de animais e evidencia como a estratégia das 4N também é aplicada para tentar justificar os demais usos de animais, não somente o consumo de carne. A aplicação das 4N varia de acordo o uso em questão. Em áreas como a de animais silvestres mantidos como animais de estimação, da vestimenta ou da equitação, o argumento da necessidade prevalece muito menos frente ao argumento do prazer. A necessidade de utilizar animais é defendida pela maioria apenas na alimentação e na pesquisa médica.

Há que levar em conta que o erro prévio da racionalização está no fato de ser uma falácia ad hoc, ou seja, um argumento que formulamos após haver executado um comportamento, tentando aparentar que esse argumento é a causa de nossa conduta, quando na realidade trata-se de um argumento surgido posteriormente para tentar justificar o que fazemos. Por exemplo, um indivíduo pode alegar que come animais porque é agradável. Mas essa não é a causa desse hábito. Ele come animais porque foi educado para isso desde criança. O prazer pode ser um complemento, mas não é a causa inicial. Além do fato de que, na verdade, ele nunca tomou a decisão de comer animais, apenas limitou-se a dar continuidade a um hábito adquirido durante a educação e a socialização em que esteve inserido desde sua infância.

A racionalização é um raciocínio ilusório que pretende encontrar um argumento, mas não pretende encontrar a verdade. Quando digo verdade, me refiro à conformidade com a evidência empírica e com os princípios da lógica.

Por exemplo, ainda é dito que comer animais é necessário por razões de saúde, embora as evidências científicas indiquem não o ser. Além disso, a necessidade não justifica moralmente causar sofrimento a outros quando os outros não têm culpa de nossa necessidade. O fato de que precisamos comer não justifica utilizar outros indivíduos como comida.

É importante destacar que o estudo publicado por Piazza e sua equipe também aponta que junto às 4N surge outra racionalização denominada "tratamento humanitário", isto é, a crença de que é correto utilizar animais se o tratamento a eles conferido for relativamente confortável. No âmbito da filosofia animalista, chamamos essa ideia de bem-estarismo. Contudo, essenão é o único argumento que se soma às 4N, visto que o estudo também reconhece que os participantes recorrem à crença de que a vida humana possui um valor moral maior do que a vida animal. Essa posição ideológica, além de enquadrar-se no especismo, pode ser classificada dentro do gradualismo. Ainda assim, faltaria mais um tipo de racionalização, referida no estudo como o argumento da "sustentabilidade", isto é, a ideia de que o uso de animais é mais ecológico do que a opção de não utilizá-los. Isto posto, ao final teríamos um total de 7 argumentos principais. 

O trabalho do Dr. Piazza expõe o papel relevante que o fator ideológico possui na manutenção de preconceitos e hábitos na sociedade. Contrariamente à teoria de que a dominação humana é sobretudo um problema estrutural, a pesquisa acadêmica demonstra a grande importância que o aspecto psicológico possui. A meu ver, isso respalda o posicionamento que defende que o ativismo educacional deve ser o foco principal e prioritário de nossos esforços se o que buscamos é uma mudança profunda em nossa maneira de nos relacionar com os outros animais.

Traduzido por Júlia Portela.

sexta-feira, 20 de março de 2020

O lado sombrio do animalismo


“Não podemos resolver um problema com a mesma forma de pensar que o provocou.”  — Albert Einstein

Peter Singer e Paola Cavalieri são acadêmicos especialistas em filosofia moral e autores de diversas obras acerca da consideração moral dos animais. Há pouco tempo, publicaram conjuntamente um ensaio intitulado «Os dois lados sombrios da Covid-19», no qual propõem que os mercados úmidos —mercados onde os animais são mortos no local para serem vendidos diretamente como comida— sejam fechados no mundo inteiro, porque há indícios claros de que eles atuam como meios de transmissão de doenças de outros animais aos seres humanos.

Esse é um exemplo, dentre muitos outros, em que vemos animalistas aproveitando a atual crise de coronavírus para pedir o fechamento dos mercados que matam animais porque eles podem ser um foco de infecção para os humanos. Mais além, há animalistas que pedem que deixemos de criar e comer animais como forma de impedir radicalmente a transmissão de zoonoses aos humanos.

Seja qual for a medida sugerida, todas essas propostas têm em comum seu objeto de preocupação: os humanos, não os animais. Todas as mensagens desse gênero pressupõem a crença de que os interesses humanos são mais importantes que os interesses dos animais. Isso promove exatamente o que o artigo de Singer e Cavalieri denuncia como “a suposta superioridade de nossa espécie”. Em outras palavras: estão reforçando o antropocentrismo.

Há animalistas que alegam que conseguir fechar esses mercados seria uma ação positiva para os interesses dos animais. Parecem-me equivocados. Fechá-los não evita que os animais continuem sendo explorados. Se esses mercados são fechados, serão abertos matadouros com controle sanitário em seu lugar. Foi isso que aconteceu na Europa substituíram os mercados públicos de animais por matadouros controlados: substituíram uma forma de exploração animal por outra. Desse modo, os humanos evitam doenças enquanto os animais seguem sendo massacrados. Eles continuam sendo igualmente explorados e mortos. Os humanos ganham; os animais perdem. Nem sequer a partir de um ponto de vista puramente pragmático trata-se de uma medida que ajude os animais.

Tendemos a achar que os animalistas têm a intenção de defender os interesses dos animais frente aos abusos do ser humano. Tendemos a achar que os animalistas têm a intenção de demandar que os animais sejam reconhecidos como membros da comunidade moral, e que nós humanos deixemos de discriminar e sacrificar seus interesses por razões instrumentais. Mas dadas as circunstâncias, parece arriscado continuar com essa suposição.

O que vemos é que os animalistas estão mais preocupados com os humanos que exploram os animais do que com os animais que são vítimas da exploração.

Sugerir que deixemos de praticar a exploração animal porque isso beneficiaria o ser humano propaga uma mensagem antropocêntrica que pressupõe que a vida e o bem-estar dos humanos é mais importante que o de nossas vítimas. Promover uma mentalidade especista –que ignora os interesses dos animais– é justamente o contrário do que consideramos que o animalismo deveria fazer. Se o animalismo não tem como objetivo defender os interesses dos animais, então ele é só outra forma de denominar o antropocentrismo

Se o próprio movimento animalista se dedica a reforçar ainda mais o nosso preconceito antropocêntrico, fortemente arraigado por si só, então já não há esperança de que haja justiça para os animais.

domingo, 27 de outubro de 2013

Devemos adotar um enfoque ambientalista?


Este ensaio pretende argumentar por que adotar um enfoque ambientalista a respeito do problema da exploração animal não é compatível com uma perspectiva vegana. Tenho várias razões que fundamentam esse posicionamento.

Primeira: o enfoque ambientalista se centra nas atividades mais poluentes e prejudiciais ao meio ambiente. Uma dessas atividades é a pecuária. Ora, a exploração animal não se reduz à pecuária, e há diversos usos de animais que não causam um impacto ambiental significativo. Quais os danos ambientais, por exemplo, das touradas, da pecuária tradicional, da tração animal ou da apicultura? O enfoque ambientalista nem sequer abarca a utilização de animais em geral, que é o foco do veganismo.

Segunda: além de não englobar todos os usos de animais, as críticas do enfoque ambientalista nem ao menos são dirigidas à pecuária como um todo, apenas à pecuária intensiva em particular. A pecuária extensiva praticada no século XIX não prejudicava o meio ambiente. Sendo assim, há grupos ambientalistas que propõem reformar a pecuária para diminuir seu impacto ecológico. Os ecologistas e as pessoas preocupadas com o meio ambiente em geral continuarão consumindo animais enquanto seguirem considerando os animais como recursos para os humanos. Enquanto mantiverem esse preconceito, sua conduta será direcionada apenas para promover a reforma da exploração animal com a finalidade de reduzir seu impacto no meio ambiente.

Terceira: um enfoque ambientalista não se opõe ao preconceito do especismo e à dominação humana sobre os animais. Assim, por nem sequer tocar na raiz do problema moral de nossa relação com os outros animais nem questionar a causa de sua exploração, o enfoque ambientalista serve apenas para promover a eficiência ecológica da exploração animal e substituir um tipo de uso de animais por outro. Isso é o extremo oposto do que o veganismo reivindica.

Quarta: uma coisa é informar as pessoas sobre os efeitos ambientais de colocar o veganismo em prática a nível global — fornecendo dados que esclareçam as dúvidas e respondam às objeções apresentadas quando divulgamos o veganismo. Mas outra coisa bem diferente é tentar promover o veganismo colocando o foco no meio ambiente. São duas perspectivas distintas. A primeira é legítima, contanto que esteja dentro de um contexto no qual explicamos que é eticamente injusto utilizar os animais. Mas a segunda não é, dado que não incentiva as pessoas a questionar o especismo nem compreender que a exploração animal é uma injustiça em si mesma, além de ter efeitos contraproducentes, como o de promover a reforma ecológica da exploração animal.

Quinta: o veganismo é a oposição ao uso de animais por considerá-lo uma injustiça. Veganismo não é deixar de consumir produtos de origem animal por serem muito poluentes. O argumento do impacto ambiental está focado na pecuária intensiva e não se opõe à maioria dos usos de animais, além de ignorar o valor moral deles. Seria o mesmo que propor que fôssemos contrários aos campos de extermínio porque eram muito poluentes, como se os humanos estivessem na mesma categoria moral que a madei ra ou o carvão, em vez de explicar que não deveríamos assassinar seres humanos, independentemente da poluição.

Por estas razões, podemos considerar que o enfoque ambientalista é moralmente errado, não respeita nem beneficia os interesses dos animais e, portanto, não devemos apoiá-lo. Se reconhecemos os animais como seres dotados de um valor moral inerente e como sujeitos de direitos, então o problema ambiental deve ser tratado a partir de uma perspectiva ética baseada no princípio do veganismo e da filosofia dos Direitos Animais, na mesma linha proposta pelo professor Tom Regan há décadas.



quarta-feira, 15 de outubro de 2008

¿Por que sou vegano?




Sou vegano porque tenho a capacidade de sentir.

Sou vegano porque os outros animais que habitam neste planeta também podem sentir.

Sou vegano porque todos queremos viver livres e desfrutar nossas vidas.

Sou vegano porque posso ser.

Sou vegano porque tenho a capacidade de raciocinar logicamente.

Sou vegano porque posso empatizar com o sentimento dos demais seres sencientes que comigo convivem neste planeta.

Sou vegano porque não me considero superior a nenhum outro animal somente pelo fato de ser humano.

Sou vegano porque não é justo que nos alimentemos às custas dos outros quando podemos evitar.

Sou vegano porque não aceito que a força seja o princípio do direito.

Sou vegano porque não aceito o abuso, a violência, a exploração, a submissão, a dominação, a violação e o assassinato como estilo de vida.

Sou vegano porque quero uma sociedade que se baseie na coexistência e não na opressão.

Sou vegano porque quero um mundo verdadeiramente justo para todas as pessoas e um futuro melhor para as que ainda estão por vir.

Sou vegano porque não quero que destruamos este planeta nem seus habitantes.

Sou vegano porque enxergo além de mim. E vejo um mundo vegano. E gosto do que vejo.