segunda-feira, 12 de abril de 2021

Uma crítica à "interseccionalidade"


      Abordagem abolicionista dos Direitos dos Animais



Neste ensaio, gostaria de explicar por que alguns ativistas veganos são contra uma abordagem conhecida como "interseccionalidade". Objeção essa que certamente não está relacionada com os supostos motivos que alguns defensores da "interseccionalidade" parecem estar propagando.

Ao falarmos de "interseccionalidade" aqui, o faremos dentro do contexto animalista e vegano em particular, e estaremos nos referindo à ideia de que o veganismo deve se ocupar de outras injustiças além da exploração animal. Resumo os dois pontos fundamentais que sustentam o posicionamento "interseccional" assim:

* O movimento vegano deve compreender outras injustiças e opressões além do especismo e da exploração animal, porque todas as opressões estão intimamente inter-relacionadas e não podem ser combatidas nem erradicadas de forma específica.

* O movimento vegano não deve exigir que todos os humanos tenham a obrigação
moral de serem veganos, visto que alguns humanos fazem parte de grupos oprimidos ou desfavorecidos que têm sérias dificuldades para compreender ou colocar o veganismo em prática devido à sua situação econômica e cultural.

Tentarei explicar por que considero erradas as suposições da abordagem chamada "interseccionalidade".

Ser contra a "interseccionalidade" não significa ser a favor da injustiça

Ser contra a "interseccionalidade" não é ser contrário ao reconhecimento da existência de outras injustiças no mundo além do especismo e da exploração animal, às quais também devemos nos opor. Não é nada nem remotamente
parecido.

Ser contra a "interseccionalidade" só significa ser contra a deturpação do sentido do veganismo, que se refere a uma injustiça concreta. Ao falarmos de veganismo, falamos contra a exploração animal; falamos contra a crença de que os animais existem no mundo para satisfazer as necessidades humanas. Essa discriminação especista existe de forma específica e precisa de uma resposta específica que permita identificá-la e corrigi-la eticamente. Da mesma forma que o machismo precisa de uma resposta própria, à qual denominamos feminismo.

Quando falamos de veganismo, estamos nos referindo, portanto, a uma questão bem delimitada e apenas à essa questão em particular. Se assim o fazemos, é porque estamos convencidos de que esse problema merece uma atenção especial que o diferencie das demais injustiças, porque a maioria das pessoas nem sequer tem noção da existência de tal injustiça. Para a maioria delas, o especismo e a exploração animal são simplesmente algo normal e natural, e nem ao menos suspeitam de que se trata de um ato moralmente condenável.

No entanto, quando explicamos o veganismo à sociedade, explicamos que o especismo é tão injusto quanto o racismo ou o sexismo, e, claro, que a exploração de animais também é tão injusta quanto a exploração de seres humanos. O fundamento ético que sustenta o veganismo é universalista. O veganismo não surgiu do nada, foi fundado dentro de um contexto moral já contrário à exploração humana e considerava que deveríamos estender a abolição da escravidão até a abolição da exploração animal.

De acordo com seu sentido original, uma abordagem vegana deve se ocupar da injustiça concreta que é a exploração dos animais, não de qualquer outra questão moral diferente. O veganismo surgiu para que as pessoas se conscientizassem de que a exploração dos animais é uma injustiça — uma injustiça que a grande maioria das pessoas nem entende nem reconhece como tal até hoje. Desviar nosso foco para outras questões seria ir contra o próprio objetivo do veganismo.

Portanto, se quando falam de "interseccionalidade" quisessem dizer que devemos nos opor a outras discriminações assim como nos opomos ao especismo e que devemos combater qualquer opressão de seres conscientes, então estaríamos de acordo. Mas para assumir essa perspectiva não considero necessária nenhuma "interseccionalidade", o correto seria adotar a doutrina dos Direitos dos Animais — da qual o veganismo faz parte — que está intimamente relacionada à doutrina dos Direitos Humanos.

Mas se por "interseccionalidade" querem dizer que, de alguma maneira, devemos privilegiar os humanos em detrimento dos animais e que todos os humanos que são agentes morais não possuem igualmente uma obrigação moral de serem veganos, temo que devemos discordar.

Se concordam ou não com as razões que trago aqui, agradeceria que os defensores da "interseccionalidade" não acusem quem não concorda com sua abordagem de que aprovamos ou apoiamos, de alguma forma, o racismo, o sexismo ou qualquer outra injustiça com os seres humanos. É uma acusação totalmente errônea, e acredito que talvez um pouco mal-intencionada ou, no mínimo, bastante desinformada.

Ser contra a "interseccionalidade" significa ser contra adistorção do veganismo.

Creio que todos concordam que o feminismo se refere a uma injustiça concreta, o machismo, que afeta especialmente as mulheres. Falar de "interseccionalidade" aqui para introduzir temas alheios ao machismo seria uma tentativa de tangenciar o objetivo específico do feminismo. O mesmo acontece com o veganismo. Se desejamos adotar uma abordagem universal sobre todas as várias injustiças que prejudicam os humanos no mundo, a doutrina dos Direitos Humanos existe para tal. Mas se falamos de feminismo, falamos então de um problema específico, não de outros. Da mesma forma, quando falamos de veganismo, falamos apenas de um tema concreto, não de outros.

Se alguém não concorda com a abordagem vegana, é livre para adotar uma diferente. O que não me parece correto de modo algum é que alguém tenha a intenção de tangenciar, distorcer ou modificar a definição original do veganismo e o propósito de sua criação. Os fundadores do veganismo consideraram que o vegetarianismo era extremamente limitado para combater o problema moral da nossa relação com os animais e por essa razão decidiram criar um novo movimento, que acabou culminando no veganismo. Não se dedicaram a tentar forçar ou tangenciar o vegetarianismo para que se encaixasse com a nova abordagem que haviam desenvolvido, compreenderam que o adequado seria fundar outro movimento muito diferente.

Do mesmo modo, se alguém está realmente convencido de que o veganismo não serve como base para mudar nossa relação com os animais, o convido a fundar uma nova abordagem para que possamos conhecê-la e discuti-la. Mas também pediria encarecidamente para, por favor, não tentar distorcer o veganismo para sujeitá-lo a outras ideias. Se julgarem necessário, podem fundar outro movimento distinto e chamá-lo de "interseccionalismo" ou de outra coisa, e depois poderemos analisá-lo e julgar sua legitimidade; mas o que seria completamente inaceitável é
que chamem isso de veganismo.

Em alguns casos, notei que existem ativistas que, após abandonarem o consumo de produtos de origem animal, decidiram se intitular "veganos", mas com o tempo preferiram adotar outra perspectiva ideológica que não se encaixa com a filosofia do veganismo. Entretanto, já haviam se autodeclarado publicamente como "veganos" e não queriam abandonar o termo ou trocá-lo por outro diferente. Seguem se intitulando "veganos", embora a ideia que promovam não seja veganismo e, em alguns casos, nem sequer se trata de uma ideologia compatível com o veganismo como princípio ético.

Imaginemos por um momento que eu decidisse que o veganismo já não faz sentido, mas, ainda assim, continuasse publicando neste blog sob uma abordagem muito diferente, mantendo o nome Filosofia Vegana simplesmente porque é o título inicial da criação do blog e não desejo mudá-lo — todo mundo já o conhece por esse nome e demandaria um certo esforço criar novamente outro blog e contas diferentes nas redes sociais. Creio que esse comportamento seria muito desonesto de minha parte. Penso o mesmo em relação a quem se comporta assim hoje em dia.

"Interseccionalidade" ou antropocentrismo?

A "interseccionalidade" implica tangenciar o sentido do veganismo sob a desculpa de que o movimento vegano deve incluir também os problemas morais internos entre humanos. Isso parece mais um sintoma do antropocentrismo, o qual não permite, nem por um momento, que nós humanos deixemos de pensar em nós mesmos e em nossos problemas; que não tolera, nem por um momento, que nos foquemos apenas nos animais e nas discriminações e violências que afetam particularmente a eles.

Não é suficiente que quase todo ativismo esteja exclusivamente centrado nos nteresses da humanidade, e ainda exigem que retiremos ainda mais atenção dos interesses dos animais para direcioná-la aos humanos. Cerca de 99% do ativismo em todo o mundo está dedicado exclusivamente aos interesses humanos. "Interseccionalidade" significa propor que essa porcentagem aumente para 99,99%, reduzindo ainda mais a pouca atenção específica da qual os interesses dos animais já dispõem.

Um típico exemplo de "interseccionalidade" é a inclusão do repúdio ao capitalismo dentro da abordagem vegana. Esse é um clássico exemplo de como os problemas especificamente humanos procuram se introduzir no âmbito do veganismo. O anticapitalismo, nesse caso, não só se origina de uma inclinação antropocêntrica, como se equivoca ao atribuir ao capitalismo um papel de causalidade na exploração dos animais. A exploração animal existia muito an do capitalismo aparecer e permaneceu intacta em sociedades não capitalistas.

Por sua vez, os defensores da 'interseccionalidade' alegam que sua abordagem serve para atrair as pessoas para o veganismo. No entanto, não vejo nenhuma prova que corrobore essa afirmação. A meu ver, a "interseccionalidade" não está ajudando as pessoas a se aproximarem do veganismo, mas sim fazendo com que todos os não-veganos continuem acreditando que os problemas humanos são mais importantes pelo simples fato de afetarem os humanos, e que podemos ignorar os interesses dos animais em favor dos interesses humanos pelo simples fato de serem humanos.

Não parece ser por acaso que os ativistas que difundem a "interseccionalidade" também defendam que o veganismo não deve ser uma obrigação moral para todos os humanos, alegando que existem humanos que se encontram em alguma situação de desfavorecimento ou pertencem a um grupo tradicionalmente oprimido, e isso já dá a eles uma desculpa para continuarem discriminando e explorando os animais, como denunciou o professor Gary Francione nos Estados Unidos. Assim, a "interseccionalidade" é contra falar de escravidão quando nos referimos à sujeição dos animais ao status de propriedade, alegando que isso ofende os grupos humanos que sofreram com a prática.

Desconfio que os incentivadores da "interseccionalidade" rejeitam a teoria dos direitos morais para defender posicionamentos não apenas antropocêntricos, mas também contrários ao veganismo; como costuma acontecer, por exemplo, com quem diz defender o antiespecismo, um rótulo que, muitas vezes, nada mais é do que uma máscara do bem-estarismo.


segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Reflexões minimalistas



Filosoficamente, o minimalismo pode ser entendido como uma extensão do princípio de Occam, que recomenda que não devemos multiplicar as entidades sem necessidade. Se não podemos justificar a necessidade de algo, para quê produzi-lo ou comprá-lo? O princípio de Occam é, sem dúvidas, um apelo à humildade e à simplicidade. Esse princípio não afirma que tudo deve ser reduzido a sua forma mais simples, mas sim que não devemos aumentar a quantidade ou a complexidade das coisas sem uma boa justificativa para isso. Dessa forma, o minimalismo incentiva que priorizemos o essencial ao supérfluo, o simples ao complicado, o importante ao desnecessário.

Há muitos sites em português dedicados ao minimalismo como filosofia e estilo de vida, então quem se interessar pode dar uma olhada. Gostaria de aproveitar para contar uma história pessoal em que coloquei em prática essa filosofia.

Uma das formas em que usei o minimalismo está relacionada com meu gosto pela leitura. Depois de anos comprando em livrarias, cheguei a ter uma coleção de mais de quatrocentos livros, o que acabou se tornando um grande problema de espaço em casa. Até que me dei conta de que não tinha sentido acumular tantos exemplares, comprados de forma um pouco compulsiva, alguns dos quais eu nem sequer tinha a intenção de ler novamente. Então comecei a presentear, doar ou vender todos os livros que não eram especialmente relevantes para mim ou os que já tinha uma cópia de boa qualidade em formato digital, chegando a reduzir o número pela metade. Neste ano, limitarei minha coleção física a cem exemplares. A maioria dos livros que mantive são no formato reduzido ou edição de bolso, o que resolveu satisfatoriamente o problema de espaço, ainda que não se trate apenas de uma questão de espaço. Sou muito apaixonado pela leitura, mas a energia e o tempo são limitados e deve-se focar no que importa. Aliás, falando em leitura, se alguém procura livros em espanhol/português sobre veganismo e filosofia animalista em geral, pode encontrar uma lista clicando aqui.

Talvez alguns leitores estejam pensando "por que está nos contando sobre sua vida pessoal se viemos aqui ler sobre veganismo?" — e com razão. Há alguma relação entre veganismo e minimalismo? Acredito que possamos encontrar alguma. Ser praticante do minimalismo não obriga nem leva ao veganismo, apesar desse ser uma postura muito compatível e convergente àquele.

Algumas pessoas argumentam que a ótica minimalista leva ao veganismo visto que os dados indicam que praticar o veganismo significa consumir menos recursos naturais em comparação à exploração animal, e também implica em menos animais sofrendo e morrendo em razão de nosso consumo. Esse raciocínio faz sentido desde um ponto de vista puramente empírico, mas nem tanto a partir de um ponto de vista moral, porque, como já argumentado em ensaios anteriores, o veganismo é um princípio ético, não um determinado comportamento. Claro que adotar o veganismo obriga, logicamente, a não consumir produtos de origem animal e a não utilizar os animais, mas ainda que a consequência da prática do veganismo fosse o contrário do que é em realidade — ou seja, que sua execução supostamente implicasse em maiores gastos de recursos naturais, ou na morte de mais animais por causa da agricultura — o veganismo continuaria sendo nossa obrigação moral de qualquer maneira.

Nossa primeira obrigação moral é não tratar os seres conscientes como simples meios para nossos fins. Depois disso, também deveríamos nos preocupar em reduzir e evitar os danos que lhes causamos ao viver, que incluem danos acidentais ou indiretos, como a poluição. O princípio de evitar o dano está subordinado ao princípio de respeitar os seres dotados de sensibilidade como pessoas, e não ao contrário. Se não reconhecemos os seres conscientes previamente como pessoas, então nem sequer teríamos racionalmente uma obrigação moral de tentar evitar causar-lhes sofrimento.

Em diversas ocasiões, deixou-se claro que o veganismo é o mínimo — e não o máximo — que podemos fazer pelos animais, no sentido de que o veganismo se trata de uma questão de ética básica. Poderíamos dizer que se trata de um minimalismo moral. Por outro lado, se levarmos em consideração que, no geral, não precisamos usar os animais para viver e desfrutar de saúde e de uma boa qualidade de vida, significa que estamos condicionando os interesses básicos e vitais dos animais para satisfazer nossos caprichos e frivolidades. Isso é claramente contrário ao minimalismo, se de fato entendermos minimalismo como a priorização do essencial frente ao trivial. Entretanto, esse enfoque é, em realidade, mais relacionado com o humanitarismo do que com o veganismo.

Há outra perspectiva minimalista mais compatível com o veganismo baseada na ideia de que se a violência é algo moralmente mau, então devemos evitá-la, e parece claro que, ao incorporar o veganismo, vivemos uma vida menos violenta no que diz respeito aos animais, dado que nos recusamos a tratá-los como objetos e recursos. Há uma relação entre veganismo e não-violência. O veganismo não implica nada além disso, mas se renunciarmos a crença de que os animais são objetos para nosso benefício e reconhecermos que eles são sujeitos de direitos, tal base moral é o fundamento e a motivação para expandir nossa consideração moral a outros âmbitos e comportamentos que também impactam os animais, mesmo que não impliquem em sua utilização.

Com relação ao minimalismo, finalizo a publicação aqui. Desejo a todos um ano feliz e vegano.